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QUE DESAFIOS SOCIAIS, SE TUDO É SOCIAL? ANGOLA, 2022-2027

Elizabete Ceita Vera Cruz | Doutora em Sociologia

«( ...) tudo é atribuído a Makar Alekséevitch; conseguiram que Makar Alekséevitch se transformasse num provérbio (...).» Dostoiévski, Gente Pobre, p.54

Oconvite para escrever um artigo sobre os desafios sociais do novo governo, no quadro do dossier sobre os desafios macroeconómicos, levanta algumas dificuldades e questões, de que destaco as seguintes: i) o que é, afinal, o social?; ii) qual o balanço, do social de 2017 a 2022?; iii) será que é desta que os programas e as políticas sociais terão em consideração os cientistas sociais, os seus estudos e trabalhos e, por conseguinte, as universidades?

Entre problemas e possíveis soluções (?), as linhas que se seguem devem ser entendidas como um texto inacabado no pouco espaço que me é/foi dado. Angola e o quotidiano dos angolanos são o pano de fundo das reflexões que têm a precariedade como fio condutor e que impõem as seguintes interrogações: o que fazer? porque fazer? como fazer?

O social – o que é?

Falar do social é falar de pessoas, de indivíduos. É falar de crianças, de homens e mulheres. É falar de projectos, de programas, de políticas públicas dirigidas para todos e muito particularmente para as categorias, para os indivíduos, para as pessoas em situação de vulnerabilidade, tendo como objectivo e denominador comum combater a pobreza, as assimetrias, as desigualdades e promover o bem comum. Assim sendo, por social deverá entender-se o conjunto das dimensões que fazem de nós humanos. Dos indivíduos diz-se serem sociais (Aristóteles) e não económicos (Taylor). Trata-se de uma aparente contradição (entre Aristóteles e Taylor, porquanto este último sublinha a importância da administração na gestão), pois porque se tudo é social, quer isto dizer que o a economia, a administração e demais áreas que se apresentam como “não sociais” o são – recorde-se que a economia integra(va) o leque das ciências sociais.

Tudo é social. Daí que a perspectivação dos desafios sociais só é possível e passível de ser entendida se e quando os números, as teorias e os conceitos da macroeconomia se cruzam com os números, as teorias e os conceitos das ciências sociais. Assim é que falar de desafios sociais é falar de prioridades da governação, que vão para além da estabilidade cambial, do FMI, do Banco Mundial e quejandos. As prioridades, em Angola, quase se confundem com o ar que se respira. Quer isto dizer que tudo é prioritário. Assim sendo, importa definir a(s) prioridade(s) das prioridades que é o combate à pobreza generalizada, à pobreza multidimensional, compartimentada em diferentes dimensões.

O social na campanha eleitoral

A errância, o desnorte das políticas sociais ao longo dos anos, para além de ter reflexos no quotidiano das populações que anseiam por melhores dias, refletiram-se igualmente, e mais uma vez, na campanha eleitoral. Saídos de uma campanha eleitoral, faz sentido um breve olhar para percebermos, por exemplo, o lugar ocupado ao combate à pobreza nas lides eleitoralistas e, deste modo, melhor compreendermos se, para além dos esperados desafios, ainda teremos que acrescentar um outro que é a falta de visão, de perspectiva e de programas dos concorrentes. No que ao social diz respeito, a campanha eleitoral foi paupérrima – mais do mesmo. Foi pobre nos programas apresentados e pobre nas intervenções dos cabeças de lista dos diferentes partidos. Ainda assim, destacaria a FNLA que, ainda que de forma pouco ou nada estruturada, apresentou e defendeu a agricultura como ponto nevrálgico, suportada no seu lema de sempre, “liberdade e terra”.

A agricultura/agro-indústria, o grande desafio

Somos extractores de petróleo, e não produtores, como é habitual dizer-se. A par da indústria extrativa (associada aos

minérios, mas a que poderíamos acrescentar a madeira – quem o diz é uma não especialista na área e, por isso, os leitores que me perdoem), podemos e devemos ter uma indústria na área do petróleo e derivados, e estoutra, pujante, no ramo alimentar, entre cereais, hortícolas, pecuária, peixe, entre outros produtos.

Para uma população que cresce a olhos vistos e que tem mais de 30% de desempregados e, de entre os que trabalham, mais de 80% encontram-se no sector informal, a questão que se coloca é: como e onde, em que área, sector, promover o emprego? A minha resposta imediata é: na agricultura. Desde logo, por se tratar de uma área por explorar e cujo efeito multiplicador, da agricultura, da agro-indústria, seja decisivo no combate à já referida pobreza multidimensional. E, claro, ao desemprego. Trata-se de um 2 em 1 e de uma aposta incontornável – não há alternativa, não há volta a dar.

A questão demográfica que vem merecendo particular atenção e um crescendo alarido um pouco por todo o mundo, transporta consigo vários alertas, de entre os quais o da sustentabilidade dos países, das sociedades e do planeta. A agricultura, a agro-indústria apresenta-se, assim, como sendo o grande desafio dos próximos anos – a guerra na Ucrânia veio chamar-nos à atenção, uma vez mais, para esta urgência. Como tornar real, a sonhada auto-suficiência e segurança alimentar, esta a grande questão que se coloca não somente em Angola, mas no continente. As respostas, necessariamente no plural, contêm outros tantos desafios, mais do que conhecidos e alguns já referidos. Por quê a agro-indústria? A resposta é básica, elementar. Porque para viver, precisamos de nos alimentar. E precisamente por isso e tendo em atenção o país e o mundo em que vivemos, hoje, sabedores que o potencial da agricultura é incomensurável, urge que os diferentes actores sociais, entre quem governa, as universidades, os técnicos, os camponeses, as associações e a sociedade civil se sintam e pensem no desafio e nas oportunidades que o campo, que a terra oferece. Vamos acabar com a fome e iniciar uma nova era? Sim, vamos combater a fome e, em simultâneo, combater o desemprego. E, por falar em desemprego, sabido que mais de 60% da população é jovem (15-35 anos) e a maioria desempregada, considerem-se então 2 vectores essenciais que alcandoram o referido desafio agrícola: juventude e emprego.

Juventude, emprego e futuro

Com apenas 3% de jovens em idade activa empregados no sector formal (Jornal Expansão), que futuro se vislumbra para esta categoria? Não podendo o sector público absorver todos quantos precisam e desesperam por emprego, não esperando que todos sejam empreendedores (erradamente entendido como empresários e/ou comerciantes), que respostas, que soluções para este exército de jovens que engrossa a informalidade (mais elas que eles)?

Sabedores da importância numérica e sociológica da juventude e do lugar que a agro-indústria pode e deve ocupar, é hora de nos perguntarmos como promover o emprego na agricultura e na indústria. No tocante à agricultura, como fazer os jovens trocarem a “normal” sedução da cidade pelo campo? Como atrair os jovens para uma área, a agricultura, por muitos considerada desprestigiante? É este exercício que urge, que deve, que tem que ser feito quando o/s projecto/s forem desenhados. Significa dizer que se impõe a transformação da economia para a materialização das políticas sociais, para que o social se cumpra, concebendo um programa que poderá chamar-se “jovem agricultor”.

Políticas públicas estruturais são urgentes, porque está em causa o futuro de Angola e dos angolanos. Se o emprego é o desafio-mor da juventude e do governo, outros há a considerar. Os problemas “normalmente” associados à juventude como a delinquência e a criminalidade, a gravidez precoce, entre outros, deverão passar pela criação e funcionamento do Observatório da Juventude e do Observatório da Mulher (em que a jovem mulher terá o seu espaço), entre outros organismos que poderão ser criados com este objectivo.

O passado que nos persegue

Sendo a geração de emprego a prioridade das prioridades – ter sempre presente que 55% dos jovens está desempregada –, é mister dizer-se que outras áreas e dimensões, ainda que rastreadas e bem conhecidas, não podem deixar de ser referidas.

À mulher (não por ser um ser biologicamente desprotegido e/ou carente!), uma atenção particular com políticas robustas de emancipação, que infelizmente não cabem neste espaço. A pessoa idosa e as pessoas com deficiência carecem de uma atenção particular – no mínimo, que se cumpra a lei. Educação, saúde, habitação, água, energia, estradas. Educação aqui entendida como instrução nas escolas dos diferentes níveis, que passa pelo aumento do número de escolas e pela qualificação dos professores, com especial destaque para os do ensino primário – e aqui não posso deixar de referir o ensino técnico-profissional e as escolas/institutos agrícolas. Cantinas e merenda escolar, esta última devendo explorar produtos locais, como por ex. a soja, a mandioca, a batata-doce, o milho, que nos remetem já para a pequena indústria. Não há como não insistir na formação dos professores primários e no sério investimento no ensino superior

que passa por que se venha a poder dizer, de “boca cheia”, que existe academia em Angola – sem esquecer as novas tecnologias, as bibliotecas (inexistentes), os museus, a educação/instrução, entrosados com a cultura. O investimento na saúde nas comunidades, nos cuidados primários, em mais e melhores técnicos, é outro desiderato. No capítulo habitação, o uso de materiais locais e/ou nos disponíveis localmente (ex. da madeira, da pedra, entre outros), deve ser incentivado – a economia e o clima agradecem. Água e energia, porque sim! Quanto às estradas, é escusado dizer-se que sem elas nada acontece.

O problema de ontem e de hoje: a corrupção

O combate à corrupção, que encimou a anterior legislatura, ficou aquém do esperado. Dir-se-á tratar-se de uma batalha perdida. As razões serão inúmeras, mas aqui a reflexão centra-se não na do “colarinho branco” mas na da “arraiamiúda”. Como combater a corrupção se as instituições não são funcionais? Como combater a corrupção se o salário mínimo corresponde ao valor gasto mensalmente no transporte de uma só pessoa? E como é que as pessoas comem, se vestem, pagam a água, a energia… e os gastos com as crianças? Em suma, como combater a chamada “pequena corrupção”, a “gasosa”, se para além do já referido, pagam-se impostos e taxas altíssimas, quantas vezes acima do referido salário mínimo? Não pode haver seriedade no combate à corrupção enquanto não houver um equilíbrio entre o salário e os gastos médios mensais – que políticas para as famílias, com este nível de desregulação? Não pode haver seriedade no combate à corrupção, enquanto as instituições, os organismos não funcionarem de acordo com as leis, as normas, com o preceituado. Quando a corrupção é entendida como expediente, como o “salve-se quem puder” para o grosso da população; isto significa que os valores éticos e morais precisam ser repostos. Quando a corrupção é “normalizada”, é o futuro de Angola e dos angolanos que está comprometido.

Se está comprometido, se está hipotecado, então não vale a pena continuar a falar-se de diversificação da economia e de futuro. A promoção da literacia tem que integrar o leque de medidas que promovam o combate à corrupção assente num novo paradigma – trata-se de um imperativo moral.

E ainda...

As assimetrias provinciais/regionais são escandalosas – há as províncias “filhas” e as “enteadas” – o orçamento atribuído atesta-o. Entre tantos escândalos, destaco um pecado-capital que se chama descentralização. Com ou sem autarquias, é urgentíssimo que as 18 províncias possam, no mínimo, oferecer todos os serviços públicos que a capital do país tem – ainda que a prestação seja má, ou devo antes dizer péssima? Urge descentralizar.

A (re)avaliação dos vários programas em curso como os PAPS, kwendas e afins, parece fazer sentido – qual o real impacto na vida dos cidadãos? O subsídio de desemprego, o abono de família e a construção e disseminação de creches e jardins-de-infância devem constar da lista de projectos a integrar o programa do quinquénio que acaba de começar. Transportes públicos, que não existem – meia dúzia de autocarros não permite que se afirme a existência de transportes públicos –, integram igualmente o leque de necessidades. Porque a compreensão do social supõe (in) formação, investigação, mas também sensibilidade – um substantivo de que gosto particularmente –, o trabalho que Angola e os angolanos têm pela frente depende não somente da inteligência mas, infelizmente, da vontade de quem governa, de quem decide. Justiça, respeito e dignidade, podem e devem ser o mote deste quinquénio, para que a pobreza não se torne num (mero) provérbio. Em suma, e retomando o anteriormente dito, as políticas sociais têm que ter respaldo, impacto real nas vidas dos milhões de angolanas e angolanos, promover a qualidade de vida de todos, onde quer que se encontrem, para que a tão necessária mudança – diria mesmo revolução, aconteça – e os angolanos se vejam livres da mediocridade e da mendicidade. Para que os angolanos sintam, verdadeiramente, a independência e a propalada democracia, cidadãos de direito, todas a sinergias são necessárias.

No país do “Quero. Posso. E mando”, este artigo que agora se termina (à semelhança de tantos outros que já escrevi), não tem valor nenhum.

OPINIÃO

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