Media Quiosque

A AGRICULTURA ANGOLANA E OS PRÓXIMOS DESAFIOS

Fernando Pacheco | Agrónomo

Em artigo anterior (ver Negócios em Exame nº 09) procurei mostrar como as más opções do Executivo angolano tinham impedido a reabilitação e desenvolvimento da agricultura angolana no pós-guerra. Contrariando os estudos realizados por uma equipa da FAO convidada pelo Governo, e apesar da retórica em favor da agricultura familiar, optou-se por um caminho que favoreceu um modelo de agricultura baseada em investimentos públicos e na produção directa de larga escala, procurando mostrar que o agronegócio era possível através de experiências bem-sucedidas. A alta na produção de petróleo e do seu preço no mercado internacional explica, em parte, essa perversão. Tal modelo custou cerca de dois mil milhões de dólares ao “erário público” em investimentos incoerentes e inconsistentes e os seus resultados em termos de produção foram quase miseráveis. Mas o mal não ficou por aí.

As políticas e estratégias seguidas prejudicaram a realização de projectos estruturantes que teriam possibilitado ganhos em conhecimento, instituições credíveis, serviços eficazes e num conjunto de infra-estruturas e de capacidades que poderiam proporcionar aumentos de produtividade e o pretendido desenvolvimento agrícola e rural, e contribuir para a melhoria das condições alimentares da população e para a diversificação da economia. Hoje Angola, para além de importar anualmente cerca de dois mil milhões de dólares em alimentos, depende da importação de sementes com qualidade, usa fertilizantes sem base científica e em quantidades irrisórias, não dispõe de um serviço estruturado de mecanização agrícola e tem um serviço veterinário praticamente inoperante, quando no início da década de 70 do século passado era um dos melhores de África.

O atraso da agricultura angolana pode ser melhor percebido se tivermos em conta que apenas 10% das terras aráveis são cultivadas, cerca de 2% da área cultivada é fertilizada quimicamente – mau grado os benefícios ambientais que daí derivam – e mais de 70% da mesma área cultivada é trabalhada manualmente, 20% com tracção animal e apenas cerca de 4% com tracção mecânica. Estes indicadores apresentam ordens de grandeza semelhantes aos existentes no início desses anos 70.

Por outro lado, o abandono da agricultura familiar resultante da aposta nesse modelo foi economicamente mau, socialmente

desastroso e politicamente perigoso. Comprometeu as hipóteses de desenvolvimento local e encorajou o êxodo dos jovens do meio rural para os centros urbanos, onde, igualmente, as oportunidades de emprego e de acesso a serviços sociais básicos eram escassas ou inexistentes.

Ao mesmo tempo, a estratégia a favor do agronegócio, em versão privada, pecou por medidas igualmente incoerentes e inconsistentes. Beneficiou de generoso apoio do Estado através de financiamentos por bancos públicos em grande parte não devolvidos, mas registou dificuldades de vária ordem por falta de experiência da maioria dos empresários, pela dependência de factores externos, pela debilidade das infraestruturas e pela fragilidade das instituições públicas – incluindo as judiciais – e da rede de prestação de serviços, entre os quais os bancários.

A mais recente crise petrolífera obrigou a uma mudança de planos. A partir de 2015, e de modo mais consistente depois de 2018, o Governo concebeu, com ajuda técnica e financeira de vários bancos e agências internacionais, cerca de seis projectos de apoio à agricultura familiar visando a sua maior ligação ao mercado, que começam a dar os primeiros resultados.

Sendo ainda cedo para conclusões definitivas, percebe-se já que tais projectos estão a proporcionar assistência técnica, aprovisionamento de insumos e criação de infraestruturas de serviços rurais a algumas centenas de milhares de famílias que desse modo estão a reconstruir os seus modos e meios de vida, a reverter a insegurança alimentar, a melhorar a renda e a reduzir a pobreza, bem como a investir os rendimentos provenientes da produção agrícola na aquisição de força de tracção e transporte pessoal (juntas de bois, carroças e motocicletas, por exemplo), na melhoria das condições de habitação, na compra de materiais escolares e roupas para as crianças. Paralelamente, porém, melhorou um pouco a abordagem de apoio ao agronegócio em termos técnicos e financeiros, e sendo igualmente prematuro avaliá-la, são inegáveis certos progressos pontuais em termos de produção e de produtividade, bem como nos índices de confiança dos empresários.

Parece que, finalmente, estamos perante o desafio de seguirmos modelos com base na nossa própria experiência. Em termos estratégicos, urge definir se a prioridade deverá estar centrada no desenvolvimento local baseado na economia familiarcamponesa, factor determinante da coesão social e nacional, ou no desenvolvimento de um agronegócio suportado sobretudo em explorações de tipo empresarial de média e larga escala, importante para a melhoria da produtividade e da competitividade visando a substituição de importações e o aumento das exportações. Admitindo que os modelos devem ser encarados sobretudo como ferramentas utilitárias, o bom senso indica que o caminho deve ser uma combinação dos dois, definindo-se o peso relativo a cada um, tendo em conta os respectivos pontos fortes e fracos. Complementarmente, a evolução das categorias mais dinâmicas da agricultura familiar para uma agricultura empresarial pode representar a emergência de uma espécie de “classe média” de agricultores, com maior possibilidade de tirar dividendos dos pontos fortes do agronegócio, sem abdicar de alguns dos da agricultura familiar. Isto poderia, também, contribuir para o crescimento do agronegócio a montante e a jusante da produção. O Projecto de Desenvolvimento da Agricultura Familiar em curso, financiado pelo Banco Mundial representa uma acção nessa direcção. Os grandes objectivos da agricultura para os próximos anos devem ser a sua contribuição para o combate à fome e à pobreza, para o emprego, para a segurança alimentar, para o desenvolvimento local e para a diversificação da economia. Estes objectivos entrelaçam-se uns nos outros. Por exemplo, só o aumento do poder de compra das pessoas actualmente com baixa renda poderá permitir a animação dos mercados locais, a instalação de serviços e a atracção de investimentos.

Para o alcance desses objectivos há que enfrentar e vencer nos próximos anos enormes desafios, sem o que não adiantará o investimento em infraestruturas e projectos de produção, como é o caso recente do Plano Nacional de Produção de Grãos. Entre eles destaca-se a necessidade de definição de uma política demográfica que tenha em conta que as taxas de crescimento do PIB não podem ser inferiores às de crescimento da população. Outros não menos importantes relacionam-se com a profunda reestruturação do aparelho institucional e de serviços, incluindo o sistema investigação-extensão; com o reforço de capacidades a todos os níveis, envolvendo técnicos, gestores e agricultores; a revisão da Lei de Terras e a reestruturação, equipamento e capacitação dos serviços fundiários, com base na avaliação da confusa situação actual; o apoio à organização de micro e pequenas empresas de produção e de serviços com recurso, se necessário, ao uso de incubadoras; a definição de políticas e implementação de programas de sementes, fertilizantes e correctivos, defensivos, assistência veterinária, mecanização, salários e incentivos aos técnicos; e, finalmente, a reformulação do sistema de crédito à agricultura e pecuária.

E para que o desenvolvimento agrícola seja sustentável será importante visão estratégica para encontrar-se um equilíbrio entre a utilização adequada dos recursos internos e a necessidade de aumentos de produtividade do trabalho e dos solos e das culturas.

O atraso da agricultura angolana pode ser melhor percebido se tivermos em conta que apenas 10% das terras aráveis são cultivadas, cerca de 2% da área cultivada é fertilizada quimicamente”

OPINIÃO

pt-ao

2022-10-10T07:00:00.0000000Z

2022-10-10T07:00:00.0000000Z

https://mediaquiosque.pressreader.com/article/281762748178414

Media Nova